quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Luis Dumont




Vou comerçar a exposição pelo o Homus Hierarchicus (1966). E um primeiro ponto que eu gostaria de ressaltar já aparece no subtítulo da introdução: As Castas e Nós . Aqui, Dumont marca uma oposição entre a ideologia central do nosso sistema social, leia-se da sociedade ocidental moderna, e a do sistema das castas. O autor chama de ideologia a todo sistema de idéias e de valores conferindo a ela um papel central na vida social.
Partindo da suposição de que as castas seriam uma instituição que é “uma negação dos direitos e surge como um obstáculo ao progresso econômico de meio bilhão de pessoas” (p.49), ele vai demonstrar que existe um juízo de valor dos ocidentais a respeito desse sistema. Dumont sustenta ao longo do texto que o sistema de castas não pode ser visto como algo não-humano ou anômalo, mas como uma instituição que deve ser compreendida. Para ele, as sociedades “primitivas” ou “arcaicas” e as grandes civilizações estrangeiras podem nos falar da humanidade em geral, e a antropologia provaria isso ao oferecernos a compreensão das mais diferentes sociedades e culturas. Nesse sentido que o autor considera que a compreensão da sociedade indiana é fecunda, justamente por ser diferente da nossa.
Assim, segundo a abordagem de Dumont, o sistema de castas vai nos ensinar um princípio social fundamental, a hierarquia. Apesar de não nos apropriarmos dele, mas do seu oposto, do igualitarismo moral e político, a hierarquia é importante para compreendermos a natureza desse igualitarismo. Aqui o autor transmite-nos a idéia de que esse outro distante, tão diferente, pode ajudarnos a falar da humanidade, e isso nos levar a pensar que Dumont concebe a antropologia como um discurso que deve falar do homem e da sociedade genericamente.
O livro, como o próprio autor diz, é uma tentativa de apreender intelectualmente outros valores através do sistema de castas para termos uma visão antropológica dos nossos próprios valores. Nesse sentido, vendo que a hierarquia é um construto cultural, a gente também pode encarar o igualitarismo da mesma forma, e não como um valor transcedental ou universal. Dumont está discutindo com o nosso etnocêntrismo- ou o que ele chama de sociocêntrismo-, ao falar em princípio igualitário e princípio hierárquico, aparententeme, como dois sistemas ideológicos, culturais.
Assim um aspecto significativo da sua análise diz respeito a um propósito comparativo. Ele está permanentemente dialogando entre o “nós” e o “outro”. Esse outro, no caso a índia, é um particular através do qual é possível atingir o universal: “(...) só aquele que se volta com humildade para a particularidade mais ínfima é quem mantém aberta a rota do universal”(:52). Como se vê aquela preocupação, que falamos na aula passada, existente na Antropologia Francesa – a saber, a relaçao entre o universal e o particular, entre a unidade e a diversidade – está muito presente em Dumont.
Talvez o que se destaque nessa introdução seja que um livro que vai tratar do sistema de castas indiano e da hierarquia comece com uma reflexão sobre seus aparentes contrários, ou seja, a nossa ideologia. As idéias cardinais dessa ideologia são a igualdade e a liberdade, e com elas o que se vê é uma representação valorizada do indivíduo. A sociologia, diz Dumont, surge discutindo com essa mentalidade individualista, demonstrando, ao invés disso, que o homem não é um indivíduo isolado, mas um homem social.
O indivíduo é um valor, ou antes uma configuração de valores que faz parte da sociedade moderna. Existiriam para Dumont duas configurações sociais, uma corresponde às sociedades tradicionais e a outra à moderna. Na primeira a sociedade é pensada tendo em vista os seus fins, não é vista como um meio para a felicidade individual, mas pelo contrário, se trata de uma ordem hierárquica: cada homem particular deve contribuir para a ordem global, ou seja, as partes aparecem em função da totalidade. Seria essa a visão holística, que concebe ao homem como homem social. A outra configuração seria a das sociedades modernas, onde as partes são mais importantes do que o todo: a sociedade aparece como um meio para que os indivíduos satisfaçam as suas vontades. Seria mais uma visão individualista. Uma sociedade tal como foi concebida pelo individualismo, argumenta Dumont, nunca existiu em parte alguma porque o indivíduo vive de idéias sociais. Outro traço moderno que se opõe ao sistema das castas é a igualdade. Dumont vai desenvolver o ideal de igualdade e liberdade segundo Rousseau e Tocqueville. Ele faz uso desses dois autores como dois ideólogos dessa ideologia igualitária baseada nos indivíduos como seres iguais. Dumont acaba a sua Introdução com uma frase provocadora: a “necessidade da hierarquia”. Ele retoma o Talcott Parsons que colocou em plena luz a racionalidade universal da ação de hierarquizar. E cita um trecho do livro “Novo esboço de uma Teoria da Estratificação”, no qual Parsons mostra que a hierarquia é um produto da diferenciação e da avaliação de coisas ou de elementos numa ordem. Ou seja, aparentemente Dumont estaria pensando a hierarquia como uma forma de classificação e valorização do mundo. Diz Dumont: “...o homem não apenas pensa, ele age. Ele não tem só idéias, mas valores. Adotar um valor é hierarquizar, e um certo consenso sobre os valores ... é indispensável à vida social.” (:66) O que me parece interessante é que ele está vinculando hierarquia ao valor. O que podemos pensar é que hierarquizar está envolvendo uma dimensão moral e não só lógica. Assim, quando Dumont fala em necessidade da hierarquia, não está se referindo à necessidade da diferença do poder, mas está dizendo que o homem age no mundo hierarquizando, dando valores às coisas, às pessoas e às idéias. O autor diz que o ideal igualitário é artificial. De fato, poderíamos pensar que o ideal igualitário é um forma de hierarquizar. Se você parte de um valor que é a igualdade, você já está hierarquizando (ele parece estar jogando com isso). Como ele diz no artigo A Comunidade Antropológica e a Ideologia : a hierarquia de níveis resulta da mesma natureza da ideologia, ou seja, é intrínsica à ideologia, “porque atribuir um valor supõe colocar ao mesmo tempo um não- valor, é organizar ou constituir um dado no qual ficará alguma coisa de não significativa.” (:234).
Posfácio a Edição Tel
No Posfácio, escrito em 1978, o que se destaca é que ele vai sair do contexto etnográfico da Índia para oferecer-nos uma teoria geral da hierarquia. A Índia lhe permitiu ver a oposição entre o englobante e o englobado que vai ser a base dessa teoria.
Nesse momento ele passa a falar da hierarquia desde um sentido mais lógico, como uma relação que se pode chamar suscintamente de englobamento do contrário. A idéia seria a seguinte: a hierarquia é uma relação lógica possível entre duas classes. Tem uma relação lógica que é a simples oposição, o que ele chama oposição distintiva, onde você tem um elemento A que supõe um elemento B. Mas tem uma oposição hierárquica que é aquela em que em um nível os dois elementos são opostos de maneira distintiva (A se opõe a B), e em outro nível esses dois elementos tem uma relação em que um engloba ao outro. Ele vai dar um exemplo extraído da bíblia que é a criação de Eva a partir de uma costela de Adão. Num nível a mulher se opõe ao homem (como Adão se opõe a Eva), mas em outro nível maior, que é pensar no Homem no sentido de Humanidade, a mulher está contida pelo conjunto Homem do qual ela seria um elemento.
O que ele diz é que a mentalidade igualitária perde de vista essa relação hierárquica entre as classes, entre os elementos, porque justamente não vê aquele nível englobante, não vê que os elementos fazem parte de um conjunto e que dentro desse conjunto existe uma relação hierárquica.
Para ele essa oposição hierárquica é um elemento fundamental do pensamento estrutural que a antropologia, provavelmente por fazer parte da ideologia moderna, deixou de lado, focalizando só na oposição distintiva. Dumont conclui afirmando que talvez exista uma única lei em sociologia que poderia chamar de lei de Parsons, pois mesmo que ele não a tenha formulado de forma explícita seria aquela a lei da hierarquia, isto é, que todo elemento é comandado pelo conjunto do qual faz parte.

A Comunidade Antropológica e a Ideologia
Agora vou passar para o artigo “A comunidade Antropológica e a Ideologia” que foi publicado na revista L´Homme em 1978. Neste artigo ele demonstra sua preocupação com a situação fragmentada da disciplina antropológica, principalmente na França. Fazendo uso de Thomas Kuhn, Dumont está chamando a atenção para o fato de que a vida da disciplina se caracteriza por uma revolução estrutural, ou seja, há um desacordo constante entre os antropólogos. A falta de consenso está cristalizada numa proliferação de antropologias. Uma das razões disso, propõe Dumont, deve-se ao fato de que as ciências sociais estão muito expostas às ideologias ambientes, às ideologias da própria sociedade em que essas ciências estão inseridas.
Dado que nos últimos anos a Antropologia está interessada cada vez mais pelos sistemas de idéias e de valores, isto é pelas ideologias, isso merece uma reflexão sobre a ideologia da antropologia como ciência e sobre a ideologia da sociedade moderna da qual a antropologia faz parte. Ou seja, o Dumont volta a problematizar o nós . Assim como fez na introdução do Homus Hierarchicus, agora está fazendo um chamado aos antropólogos a problematizar o nós não só da sociedade moderna, mas também o nós antropológico, o nós antropólogos.
Marcel Mauss, antes de 1900, diz que a “antropologia postula a unidade do gênero humano”, para em seguida considerar as diferenças. Ou seja, a antropologia se funda num encontro de duas dimensões que parecem estar em tensão, a unidade e o universal do gênero humano, e a particularidade e a diversidade. Dumont fala dessa oposição fundante da disciplina em termos do individualismo-universalismo moderno, por um lado, e por outro o holismo, isto é, a perspectiva que considera a sociedade ou cultura fechada em si mesma, que identifica a humanidade com sua forma concreta particular. Ele diz que a antropologia nasce da combinação desses dois termos e que o fato de não contemplar tanto o universalismo quanto o particularismo pode levar a situações como aquela que a antropologia estaria vivendo naquele momento. Aquela fragmentação resulta de uma overdose de particularismo que precisaria ser equilibrada, segundo Dumont, com um pouco de universalismo capaz de reestabelecer o diálogo.
A pergunta que ele se faz é: “como proceder para relacionar de um modo construtivo o individualismo de que somos fruto e o holismo que predomina em nosso objeto de estudo?”.
Dumont faz uma proposta a partir das idéias de Leibniz: cada cultura expressaria, a sua maneira, o universal; isto é cada particularidade exprimiria a unidade. Na verdade é isso o que Dumont faz no Homus Hierarchicus, ele parte desse pressuposto, tentando falar, atráves do sistema de castas indiano, da hierarquia como uma operação universal. O Dumont propõe o modelo de Leibniz como um ideal para orientar o trabalho dos antropólogos.
A reconciliação que Leibniz faz entre o universal e o particular seria mais uma combinação hierárquica dos dois princípios. Num primeiro nível, no nível global, somos necessariamente universalistas. Cada cultura ou cada sociedade expressa o universal a sua maneira. Num segundo nível, no qual se considera alguma cultura ou alguma sociedade particular, a primazia se inverte e se impõe o holismo, e cada sociedade aparece como um universal concreto. Para Dumont, aparentemente, o universal ou universalismo ocuparia um lugar superior na hierarquia, porque para ele não priorizar o universalismo seria destruir a antropologia. Segundo o autor aquela multiplicidade de antropologias, que corresponderia a uma multiplicidade de culturas, seria a destruição da disciplina.
A proposta que Dumont faz para solucionar os males dos quais padece a antropologia não se esgota aqui. Além disso, ele fornece duas sugestões propostas: primeiro, a comunidade antropológica deve definir sua natureza em função da sua relação com a ideologia moderna. E aí aparece o que ele já trabalhou no H.h, a antropologia deve problematizar as noções de indivíduo e de igualitarismo, as quais obstacularizaram o conhecimento das sociedades não-modernas. Uma segunda questão é que “o princípio de unidade da disciplina reside numa comparação dos universais concretos dentro de uma perspectiva universalista”. Isto é, dentro de uma perspectiva universalista, a antropologia tem que comparar universais concretos.
Os universais que ele vai propôr são tipos de relações: a oposição distintiva e a oposição hierárquica. São dois universais que podem permitir a comparação e o diálogo dentro da própria antropologia. A primeira era aquela que opunha dois termos simetricamente, ou seja, nenhum é superior ou engloba ao outro. A segunda, a oposição hierárquica, como podemos ver, implicaria que dois termos se relacionam e se opõem, sendo um o conjunto e o outro um elemento desse conjunto que o contém.
A comunicação no interior da comunidade antropológica requer os conceitos universais, isso para ele é um requisito. Agora o desenvolvimento recente que acentua a especificidade de cada cultura debilita esses universais que ele quer resgatar.
Ele volta a assinalar que a ideologia moderna é hostil à hierarquia, então tende a negár-la. Uma forma de fazê-lo foi a distinção entre fato e valor. Essa distinção que é própria da ideologia moderna, permite eliminar a hierarquia do terreno dos fatos, ou seja, como se os fatos por si não estivessem hierarquizados. Para mim não fica tão claro as implicações dessa distinção na eliminação da hierarquia.
A Antropologia nasce tentando unir a diferença, se encontra com a diversidade mas tem que dar conta também da unidade presente nessa diversidade. O gênero humano é diferente, mas tem coisas em comum. E a hierarquia está na mesma situação, se encontra com coisas diferentes mas estabelece nao só uma relação de oposição, mas também de união, porque quando se hierarquiza se está englobando uma coisa dentro da outra, ou seja, unindo coisas diferentes. A hierarquia concebida como universal permitiria duas coisas: a comparação intercultural e o diálogo dentro da disciplina. Dumont está propondo colocar ou recuperar algumas doses de universalismo no trabalho antropológico.

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